segunda-feira, 20 de setembro de 2010

DANÇA DO VENTRE

Quando chegamos nas aulas de dança do ventre o fazemos timidamente, com dificuldade para realizar movimentos alheios ao nosso cotidiano. À medida que transcorre o tempo e vamos nos familiarizando com esse mundo novo que se abre diante dos nossos sentidos, boas novidades começam a aparecer: mais controle sobre o corpo, maior delicadeza e fluidez dos movimentos, desejo de se vestir a caráter e escutar música oriental, menos tensão no corpo, expressão mais sossegada e, principalmente, um desejo imenso de continuar dançando. A que se deve isso?
Para responder, partimos do pressuposto de que nossa identidade, longe de ser aquilo que mantém as pessoas como sendo idênticas a si mesmas, é uma série de histórias que contamos sobre nós mesmos/as, organizando-as de forma coerente. Essas histórias vão mudando na medida em que vivemos: em diversos momentos reinterpretamos nosso passado, nos contamos histórias diferentes sobre nós, e isso é sinal de que mudamos (Echeverría, 1994; Íñiguez, 2002). Já aconteceu com todo mundo o fato de assistir um filme ou ler um livro pela segunda vez, e entendê-lo de maneira muito diferente à primeira: se o filme –ou o livro- mudou, o fez porque nós nos transformamos.
Começar a fazer aulas de dança é, para grande parte das alunas, uma novidade. É, portanto, uma mudança na vida: o corpo começa a aprender novos repertórios; o ouvido, novos sons; o rosto, novas expressões. Aos poucos, vamos esculpindo dentro de nós mesmas uma outra pessoa que não existia. Isso parece muito com o bom trabalho de transformação psicológica: “dançar é esculpir com música”, trabalhando diretamente nossas emoções, estando em contato com o palpitar da vida e encontrando-nos conosco (Olalla, 1995). “Através do movimento a dança nos permite possibilidades de ser que não tivemos”, que a vida nos tirou e/ou que não nos atrevemos a experimentar. A dança faz uma metáfora direta da vida: se consigo fluir na dança e transformar meus movimentos, minha postura e minha expressão, isso já é uma mudança de vida que pode trazer muitas outras.
Um dos fatores que facilita o crescimento da autoconfiança na dança do ventre é que a mesma não tem requisitos rígidos relativos ao tipo de corpo da dançarina, a sua contextura ou idade. O que interessa é a beleza do movimento e o sentir-se bem consigo mesma, sentindo-se ao mesmo tempo apoiada pelo grupo de mulheres que compartilham a dança. Sem contar o fato de que quase todas as dançarinas árabes famosas seriam consideradas “gordinhas” na nossa sociedade, facilita a aceitação do próprio corpo em uma sociedade de culto à aparência física (o Brasil é campeão mundial em cirurgias plásticas, e deve sê-lo em número de academias por habitante).
Vivemos em uma sociedade que cultua a eterna juventude e o corpo perfeito, que tem dificuldades para lidar com a velhice e a morte, e que escraviza homens e mulheres - principalmente as segundas- em padrões estéticos que, para serem mantidos, precisam de rituais que são praticamente sessões de tortura: tratamentos dolorosos contra a celulite e a gordura localizada, musculação frenética, dietas absurdas, bronzeamento artificial, cremes e cosméticos, cirurgias estéticas e depilações variadas, aparelho nos dentes por qualquer motivo, balanças “de plantão” em todas as farmácias... A indústria da beleza fatura milhões em cima do nosso sofrimento!
Em meio a essa loucura, ter uma opção como a dança do ventre facilita uma relação muito mais sábia com o próprio corpo e, como dizem as alunas, “faz bem para a alma”. É um espaço de resistência em um mundo de crescente solidão; é um cantinho em que as pessoas se conectam consigo mesmas e com outras. Mas isso não acontece da noite para o dia. As pessoas chegam às aulas envergonhadas da própria aparência, sentindo-se feias por detalhes
às vezes imperceptíveis, pensando que serão proibidas de entrar na dança por não terem um físico perfeito –idealização da sociedade de consumo- ou por terem alguma dificuldade de movimento. Como em toda boa terapia, então, na medida em que as pessoas vão aprofundando seu trabalho corporal passam por momentos de frustração, de sentirem raiva ou desânimo, ou medo de serem observadas por outros; momentos de descobrir coisas que doem e que provavelmente têm relação com aspectos anteriores da nossa vida. Há avanços e regressões; há superações e dificuldades, e é um processo de aprendizagem que não acaba nunca. Mas o prazer de dançar é mais forte e faz com que as pessoas compareçam, treinem, se mostrem, se arrisquem. É um processo de ganhos para a vida, em meio à leveza da alma e o fluir do movimento.

Alejandra León Cedeño , venezuelana, 30 anos, formada e pós-graduada em psicologia pela PUC/SP, fez mestrado e doutorada em Barcelona, formada em Danças Árabes pela Escola Rhamza Alli. Professora e bailarina desde 2000, já atuou e lecionou na Europa e Norte da África.

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