terça-feira, 6 de julho de 2010

entrevista Pina Baush

O bale da diversidade

Nascida no dia 27 julho de 1940 em Solingen, na Alemanha, a bailarina e coreógrafa Philippine Baush – ou simplesmente Pina Bausch – é um dos maiores fenômenos de dança mundial desde os anos 70, quando fundou, na pequena cidade alemã de Wuppertal a sua própria companhia, a Tanztheater Wuppertal. Em dezembro de 2000, Pina Baush esteve no Brasil para apresentar aquela que era a mais recente peça do seu repertorio, Masurca Fogo (1998), baseada nas danças tradicionais das ilhas de Cabo Verde. Na ocasião, aproveitou para iniciar uma pesquisa a fim de montar uma peça sobre o Brasil, que acabou sendo concretizada em maio do ano seguinte. O espetáculo fez temporada na Europa e também no Brasil sem um titulo definido, acabando, mais tarde, sendo batizado de Água Herdeira da escola expressionista de dança de kurt Joos (1901-1971). Pina Baush é um dos nomes históricos na criação e do desenvolvimento da linguagem do teatro-dança, em peças como A Lenda da Virgindade. Uma Tragédia (1994), Cravos (1995) e o Limpador de Vidraças (1997). Nelas, por meio da palavra e do movimento, explora a condiçao humana universal, ao mesmo tempo em que rastreia a diversidade cultural do mundo. Isso se reflete tanto na criação de peças temáticas sobre paises como na própria composição do elenco da companhia, que conta com interpretes de varias etnias e nacionalidades – inclusive com a presença das bailarinas brasileiras Regina Advento e Ruth Amaranto. Quando sua companhia comemorou 25 anos de existência, Pina Baush concedeu a entrevista que segue a Norbert Servos, reconhecidamente o maior especialista em sua obra e que, então inédita na imprensa mundial, foi publicada na edição n 39 de BRAVO!

BRAVO! : Você disse em certa ocasião que a vida é como uma viagem observamos muitas coisas nas viagens: musicas, dança, culturas diversas. Tudo isso é processado nas peças.

PINA BAUSH: Não sei exatamente como ocorre nas peças, mas preciso processar tudo isso. É claro que essas coisas estão em mim, em algum lugar dentro de mim.
Como é a experiência de lidar com pessoas de outras culturas.
Acho maravilhoso, do contrario não faria isso, ate porque é bastante cansativo e trabalhoso. Mas é algo intensamente importante.

É correto dizer que você é uma pessoa com verdadeira paixão pela observação de tipos humanos.
Sem duvida. Só não sei se isso envolve apenas a visão. Gosto de sentir, de ter sensações. É claro que também fico olhando, mas isso tem a ver também com a maneira pela qual as coisas batem na retina, com o que você enxerga. Afinal de contas, não sou uma pessoa que simplesmente fica olhando ou fazendo apontamentos. Tudo o que eu vi não tem a menos utilidade para mim.

Quem olha para você vê uma pessoa que assimila tudo com muita atenção, guardando tudo em si, para depois expressar tudo de forma diferente.
Concordo com essa idéia da assimilação. Vivendo muitas coisas, mas não sei onde elas ficam armazenadas. Não sei nada, alias. É impressionante como sabemos tão pouco.
Se você fizer agora uma retrospectiva de 25 anos, será que as vezes aparece essa sensação de que o pique poderia baixar num determinado momento.
Não tenho tempo para me ocupar com isso. Meu único medo é ser devorada por outras coisas e não ter tempo para trabalhar nas peças. Não sinto nenhuma falta de vontade. O meu problema é o inverso. Ficaria muito contente se ficasse um pouco mais aliviada das tarefas que envolvem organização para poder me concentrar mais em atividades criativas.

De onde você tira motivação para fazer tanta coisa.
Os bailarinos não vieram a Wuppertal para ficar parados em casa. Querem trabalhar, e muito. A vida útil de um bailarino é limitada, de modo que eles não tem tempo para se acomodar. Eles ficam muito tristes quando não tem o q fazer. Querem trabalhar e, na medida do possível, participar da peça seguinte. E isso também é uma coisa maravilhosa. Não posso dar-me ao luxo de ficar cansada (risos). Há tantas expectativas, e isso também é uma coisa bonita. Não posso simplesmente cair fora e tirar férias. De repente, aparece alguém na minha frente, radiante de felicidade e diz: “Quero trabalhar”. Isso transmite energia: você da e recebe. É como nas viagens: o que se aprende e vive é muito forte. Sentimos tanta coisa, ficamos repletos dessas coisas – e, por algum lugar, tudo isso precisa sair da gente.

Você acha que muita coisa mudou em seu processo de criação desde sua vinda para Wuppertal.
A gente nem se da conta disso. É um processo bem lento. Na época (1974), eu fiz, para citar um exemplo, Fritz. Esse projeto já foi uma colagem e não se baseava em nenhum original sobre o qual eu precisaria trabalhar. Em seguida fiz Ifigênia em Tauris e uma peça que se chamava Ich Bring Dich um die Ecke ( Eu te Mato) , depois Orfeu. Como você vê, eu me movimentava em extremos distantes. Esse modo de trabalhar não surgiu tão tardiamente. Existiu desde o principio.

Você se refere a “extremos” porque, em um desses casos, havia uma peça musical que servia de base.
Não havia uma peça que servia de base, mas também uma obra preexistente. Assim, já havia a necessidade de estar em certa harmonia com a musica, com os papeis. Mais tarde as coisas evoluíram, mas no sentido de que todos os elementos se tornaram importantes.

Alem disso, houve durante algum tempo uma forte carga emocional em suas peças, que provocou muita gente. Hoje, suas obras se caracterizam mais por uma alegria serena...
A carga emocional é sempre muito importante. Fico entendida quando não consigo sentir nada. Naturalmente, as peças apresentam hoje uma certa alegria serena, que não pode ser imaginada sem o pólo contrario. Esse consenso tácito com o publico nos faz sorrir diante de nos mesmos, da condição humana... Mas esse traço existiu
Também em Renate wandert (Renata Migra) e Keuschheitslegende (Lenda da Virgindade). Só que as coisas se passam cada vez mais de forma distanta. Em cada peça temos sempre também o oposto, como na própria vida.

Seu grupo mostra uma energia renovada, diferente. É por isso que há mais danças nas peças.
Os movimentos surgem como eu antes encontrava as coisas. Isso sempre me interessou muito. Não a própria composição, mas a descoberta do movimento.

Há mais solos nas coreografias. As peças mais antigas davam ênfase as danças coletivas.
Isso é conseqüência dessa busca paralela. Por um lado, temos o movimento,e em formas muito individuais. Quer dizer que eu trabalho com cada individuo ate mesmo em termos de movimento. O que resulta do fato de que eu tenho muitos bailarinos, bailarinos maravilhosos. E isso também tem a ver com o fato de que os bailarinos se esforçam incrivelmente – tem consciência da responsabilidade que assumem nos seus papeis.

Você já disse que houve também algumas transformações na busca e descoberta das danças.
A gente sempre procura algo novo. Já fizemos tanta coisa, e não me interesso pelo que já fiz. Mas então todos perguntam: “Por que você não faz um projeto como A Sagração da Primavera”. Respondo: “Temos Sagração... e também Ifigênia em Tauris. Continuamos apresentando estas peças. Quando chegar a hora, certamente farei”. Este é o lado bonito: a gente começa a caminhar sempre do zero, sempre precisa abrir novas portas.

Você ainda tem medo de começar da estaca zero, como ocorria no incio de cada peça, no passado.
Não sei como isso se chama, se é medo ou não. Nesse ponto as coisas nunca mudaram. Acontece uma coisa muito especial quando a gente faz uma peça. Inicialmente, eu começo a procurar. O primeiro problema consiste em que a gente precisa de material, muito material. Isso ainda não resulta em uma peça. Nesse material, que a gente desenvolve, eu espero encontrar algumas miudezas, com as quais começo a compor alguma coisa, com todo o cuidado. Tudo se passa como se eu fosse um pintor que tem apenas um pedaço de papel e precisa pintar sobre ele: é preciso saber proceder de forma muito cautelosa. Quando a gente erra num detalhe, não há mais como corrigi-lo. De repente, a gente se perde. Daí a grande preocupação e concentração para fazer a coisa certa. Não há nenhuma certeza nesse momento. Começo com algo e nem sei a direção que o trabalho vai tomar. A única coisa complicada, não se trata apenas do medo. Há também a esperança de encontrar algo muito bonito.

Você tem a sensação de que as peças mudam quando os papeis são distribuídos a outros bailarinos. Ou será que elas conservam o mesmo perfil.
Elas deveriam preservar o mesmo perfil. Essa é a dimensão bonita em uma apresentação ao vivo: cada noite é diferente. É necessário muito trabalho para manter uma peça de tal forma que ela parece renascer no palco no instante da sua apresentação. Não se pode simplesmente levar a rotina na mala e dizer: “Bem, pessoal, vamos fazer essa peça”. Afinal de contas, a peça deve ter o frescor da novidade em cada apresentação.

Você tem aspirações para o futuro da companhia e de sua obra.
Gostaria que pudéssemos criar uma situação na qual fosse possível trabalhar muito. Gostaria que todos os participantes desse trabalho fizessem tudo com prazer e grande senso de responsabilidade. Não quero que as pessoas trabalhem e se torturem, sofrendo do começo ao fim. Quero alegria no trabalho, e que ela seja transmitida ao publico. Quero – e nem sei bem como vou expressar isso – que alguma coisa se expanda, lance pontes. Quero fazer muitos amigos no mundo inteiro. E que tenhamos novamente vontade de aceitar o desafio da vida, e mãos a obra! Quero que preservemos a esperança. E que isso produza um efeito positivo.

Tradução: Peter Naumann
Entrevista publicada em dezembro de 2000! Pina Baush

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