UMA REFLEXÃO SOBRE AS SIMILARIDADES ENTRE LABAN E PICASSO
No início do século XX, a Europa está adormecida na crença de que o pacifismo teria continuidade na eterna despreocupação. As elites européias acreditavam no progresso, na paz universal, retardando as revisões sociais e considerando as passeatas dos anarquistas e os protestos dos marxistas como manifestações literárias a serem confiadas aos cuidados da polícia, não conseguindo interpretar os sinais do começo da deteriorização do Velho Mundo. Entretanto, os novos artistas, por meio de um radar que não falha, denunciam o iminente cataclismo que vai abalar o mundo inteiro (BARDI, 1980, p. 7).
Neste capítulo, busco discutir as similaridades, associações e pontos de contato existentes nas pesquisas e experiências estéticas de Laban e Picasso, relacionando-os ao contexto histórico vivido pelos dois artistas. Para realizar tal intento, faço uma análise a partir dos dados coletados sobre a vida, a obra, os processos criativos e os fatos ocorridos na trajetória de cada artista.
Os acontecimentos ocorridos no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX fizeram o pano de fundo que inspirou o pensamento de Laban e Picasso, dois artistas que inscreveram os seus nomes na História das Artes. Esse foi um período de muitas transformações, sendo que, por volta de 1900, Paris era considerada a metrópole da vanguarda artística do mundo, a capital da moda e, era para lá que se dirigiam artistas de todas as nações.
Nessa época, o jovem Picasso tinha então 19 anos e, juntamente com seu amigo Carlos Casagenas, também pintor, instala-se no bairro boêmio de Montmartre, na capital francesa, visando ampliar seus conhecimentos em arte, buscando um ambiente para criar e realizar exposições. Por sua vez, neste mesmo ano de 1900, Laban que contava com 21 anos, também chega a Paris para estudar arquitetura.
Constatei através destes dados que, além de serem contemporâneos, Picasso e Laban tinham o mesmo interesse: a arte e tudo o que esta envolve. Enquanto a Laban interessavam a arquitetura, as artes plásticas, as artes cênicas, a música e a dança, a Picasso interessava principalmente o desenho e a pintura, embora ao longo de sua carreira tenha criado figurinos e cenários para teatro, produzido esculturas, gravuras e cerâmicas, e também se interessado pelo movimento expressivo da dança. Algumas obras de Picasso têm como tema central a música e a dança.
Estes dados levaram-me a deduzir que os dois, Picasso e Laban, tiveram interesses que podem ser definidos como interdisciplinares, pois perpassaram e se interessaram por todas os campos da arte, na sua interrelação com o contexto histórico, político e social.
Nos sete anos que Laban morou em Paris teve a oportunidade de assistir a inúmeros espetáculos e atividades que envolvessem artistas, atores, bailarinos, de maneira que ele e Picasso freqüentaram o mesmo meio artístico e vivenciaram todos os acontecimentos culturais, políticos, econômicos e sociais, ocorridos nos primeiros anos do século XX.
Este fator muito influenciou e contribuiu para a formação estética e política de ambos. Assim, enquanto Laban fazia intensas pesquisas sobre o uso do movimento humano, visando realizar movimentos com o mínimo de esforço possível, Picasso também fazia intensas pesquisas buscando a simplificação e a essência das formas.
Percebi também o quanto a arte africana influenciou os dois criadores. Enquanto Laban era influenciado pela dança e pelos rítmos africanos, Picasso era influenciado pelas máscaras e esculturas africanas, o que resultou na criação de uma de suas mais polêmicas obras: As Senhoritas de Avinhão, em 1907. o interesse e a paixão de Picasso e Laban pela estética africana foi porque esta era uma estética que não seguia e nem conhecia as regras clássicas vigentes e valorizadas na época.
Quanto á visão que ambos tinham a respeito das estéticas clássicas estabelecidas e vigentes até então, Laban propunha que o corpo deveria buscar uma maior conscientização do próprio movimento, explorando e entendendo melhor sua movimentação. Através dos esquemas geométricas foi possível que o individuo não apenas reproduzisse movimentos feitos por outros, mas sim se situasse melhor no espaço, entendesse a trajetória percorrida, o alcance dos movimentos, as divisões do corpo (cabeça, membros...), os sentidos de lateralidade, e a amplitude dos movimentos. Na concepção de Picasso, as antigas e clássicas regras formais até então estabelecidas deveriam ser abandonadas, de maneira que as formas inovadoras seriam aquelas que fossem torcidas, retorcidas, contorcidas, distorcidas, quebradas, deformadas, geometrizadas..., é o prenúncio do Cubismo.
Quanto à utilização das figuras geométricas, ambos, Picasso e Laban fazem amplo uso destas formas, perseguindo a geometrização, a simplificação e a estilização, ou seja: a síntese. Enquanto Laban inspira-se nos elementos geométricos para explicar seu método, como o tetraedro (4 faces), o octaedro (8 faces), o cubo (6 faces), o icosaedro (20 faces) e o dodecaedro (12 faces), Picasso inspira-se nestes para as suas composições pictóricas cubistas.
O estilo cubista procurava mostrar frontalmente todas as partes de um objeto retratado, o qual poderia ser observado de qualquer ângulo, ou, como disse Guillaume Apollinaire (In COLEÇÃO PINACOTECA CARAS, 1998, p. 2), “Picasso estuda um objeto como um cirurgião disseca um cadáver”. Laban, por sua vez, também desmonta e desmembra estas figuras para melhor exemplificar suas coreografias e explicar seu método.
Segundo Garaudy (1980) que a partir do sistema Laban, foi possível responder às seguintes questões:
1. Qual a parte do corpo se move?
2. Em que direção do espaço vai o movimento?
3. Qual é a velocidade de sua execução?
4. Qual é o grau de intensidade da energia muscular desprendida?
Um outro ponto de intersecção entre os dois artistas, foi que ambos passaram pelos períodos anteriores à 1ª e à 2ª Guerra Mundial. Laban sofreu os horrores do nazismo e o poder de Hitler. Picasso, por sua vez, também sofre com a Guerra Civil Espanhola, na qual foi destruída a cidade de Guernica.
Esses acontecimentos históricos fizeram com que muitos artistas se sentissem ameaçados, pela sua maneira de pensar e produzir, como é o caso de Laban, que no espetáculo de abertura dos jogos olímpicos de Berlim em 1936, reuniu sessenta grupos de bailarinos que nunca tinham ensaiado juntos para executar uma movimentação a partir de partitura coreográfica criada por ele, motivo pelo qual Laban foi mantido por vigilância em Staffelberg, a mando de Hitler. O artista não concordou com esse ato e refugiou-se, primeiramente em Paris e logo em Devon, na Inglaterra, onde pode desenvolver seu método livremente sem repressões do nazismo.
Um ano depois, em 1937, Picasso indignado e furioso pinta Guernica, aquela que é considerada sua obra mais séria e forte, pois retrata esta cidade espanhola quando foi cruelmente bombardeada e destruída a mando de Hitler. Milhares de pessoas morreram ou ficaram feridas, tendo a cidade de Guernica ficado em chamas depois de muitos ataques com bombas e metralhadoras.
Esta obra que foi feita em apenas um mês, é uma das mais conhecidas do século XX. Nela Picasso se utiliza de toda a expressividade do Cubismo para fazer uma denuncia e um protesto desta destruição mostrando o quanto a guerra era fútil.
Em seu protesto Picasso se utilizou também do tamanho e das cores. A tela é enorme, cerda de 3,6 metros de altura por 7,6 metros de largura. E foi pintada a óleo em preto, cinza e branco. De acordo com o fascículo nº 8 da Coleção Ofício de Professor (2003, p. 13):
Esta obra nos permite perceber com a arte se aproxima da vida, o quanto um artista participa da sociedade em que vive, manifestando suas posições políticas e lutando por elas. O pintor espanhol realizou muitos desenhos criando a estrutura, buscando detalhes, procurando novas idéias, tornando visível o sofrimento através da forma e da matéria. Era 26 de abril de 1937. os aviões alemães destruíram a antiga cidade de Guernica... Poucos dias depois, Picasso começou seus desenhos, na busca de personagens, animais e situações que fossem símbolo da dor e da guerra, da humanidade indefesa que se torna vítima. A imensa obra é toda em branco e preto, o que faz lembrar uma espécie de luto e, por imposição do artista, só foi para a Espanha após a queda da ditadura militar (1981), oito anos depois de sua morte.
Transcrevi esta citação para realçar o fato de que, tanto Picasso quanto Laban, não passaram alheios aos problemas de seu tempo. ao contrário, foram comprometidos e lúcidos, combatendo através de sua arte.
Quanto ao fato de Picasso e Laban residirem em determinada época de suas vidas em Paris, Picasso ficou até 1945, enquanto que Laban se mudou para Londres em 1907.
Enfim, a obra dos dois artistas, analisada neste capítulo, foi um reflexo, um espelho dos ideais e do espírito de seu tempo, sendo que ambos tiveram uma vida longa e muito criativa, criando e produzindo até o final. Laban morreu aos 78 anos na Inglaterra e Picasso aos 92 anos, em Mougins, na França. Ambos fizeram relevantes pesquisas para o campo das artes, tendo como uma das metas buscar uma expressão espacial mais livre, espontânea e natural, tanto do movimento corporal como da forma plástica, reinventando assim a arte.
Em termos de relevância, como Picasso e Laban empenharam-se em lançar as bases e as sementes das vanguardas artísticas, os estudos de ambos tornaram-se referência na direção para onde seguiria a dança e a pintura moderna que perpassou grande parte do século XX.
Laban e Picasso: um espanhol e outro húngaro, dois artistas testemunhas de seu tempo, relacionados pela arte e pela história e que fizeram de suas criações um instrumento de combate e protesto contra a tradição estética, política e social estabelecida pelas elites e classes dirigentes.
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